terça-feira, 29 de outubro de 2019
sexta-feira, 25 de outubro de 2019
domingo, 13 de outubro de 2019
sábado, 12 de outubro de 2019
quinta-feira, 10 de outubro de 2019
“Aqui estou eu debruçada na janela do meu quarto a tentar avistar o brilho de uma estrela cintilante nesta noite gelada e escura enquanto seguro a caneca quente de chá, que me acalma o estômago… acabando por perceber que até a caneca sujeita ao vento frio que invade o meu quarto se mantém quente mais tempo do que o meu coração outrora o foi…”
quarta-feira, 9 de outubro de 2019
"A MULHER DA MINHA VIDA!"
"Soube da sua morte pelo telefone. Chorei como se as lágrimas
pudessem durar para sempre; ao fim de um longo tempo julguei que elas nunca
mais deixariam de me correr. Mas as lágrimas terminam como tudo o resto, como a
vida dos que amamos e nos fizeram, para o bem e para o mal, ser estes. Que me
fizeram ser este.
A avó Joaquina, mãe da minha mãe. Teria feito 100 anos no
princípio desta semana. Teríamos celebrado com um bolo de chantilly e três
velas se aquele telefonema não tivesse existido ou eu não o tivesse atendido –
pergunto-me bastas vezes se fiz bem em fazê-lo, se porventura poderia ter
evitado a sua morte se o preferisse ter ignorado, se não lhe tivesse dado
importância. A partir daí mantive-o em silêncio. Na maior parte das vezes,
quanto muito, vibra sem tocar.
Foi, num certo sentido, a mulher da minha vida.
Tinha a quarta classe mal tirada. Nascera nas Mouriscas, terra
de Abrantes, e aprender a ler e contar era menos importante do que fazer-se à
vida. Aprendeu a costurar numa máquina com um pedal, fazia soutiens que depois
levava ao patrão. Recordo-me bem. Apanhávamos o 9 em Campo de Ourique,
descíamos à Estrela, passávamos pelo Largo do Rato, descíamos ao Marquês de
Pombal e atravessávamos a Avenida da Liberdade até alcançar os Restauradores. O
patrão trabalhava aí, num prédio alto ao lado do Hotel Avenida, subíamos vários
andares num elevador que imaginei num filme de Orson Welles. As meninas
faziam-me uma festa enquanto o patrão recebia os soutiens e lhe dava notas em
troca. A avó guardava-as no seu porta-moedas. Fazíamos o caminho de volta.
Nunca mais haveria de ser tão feliz. Só que não o sabia.
O cheiro do pastelão de ovos ou do frango de fricassé. Tantas
vezes ainda o sinto, como se ela tivesse regressado de uma longa viagem,
estivesse na cozinha e me fosse outra vez chamar para vir para a mesa.
Chamava-me Miguel. Como toda a família que já existia antes de
mim; assim me reconhecia. Após a sua partida, e da morte de minha mãe, passei a
ser outro nome, o Miguel deixou de existir.
Levava-me um pão embrulhado num pano ao recreio da escola
primária. E acordava-me nas manhãs com um pequeno-almoço que me pousava na
cama. Aos fins-de-semana comprava-me o jornal desportivo e nunca se esquecia de
me despertar com um beijinho. Quando comecei a sair era com o seu dinheiro – de
três em três meses oferecia-me mil escudos que gastava religiosamente em livros
e numas cervejas.
A primeira vez que me apaixonei foi ela quem me deu o dinheiro
para o jantar. E no rescaldo da tragédia foi ela a tranquilizar-me. A menina
achava-me graça mas não a suficiente. Convenceu-me então que os grandes amores
ainda estavam para vir. Assim como os grandes projetos.
Morreu a 13 de Setembro de 2000. E o funeral celebrou-se no dia
em que fiz 29 anos. Na semana anterior quis ver-me, tinha coisas para serem
ditas, não desejava ir embora sem mas dizer. Ouvi-a. Informou-me que não ia
durar muito, estava cansada e, mais do que nunca, a sua cabeça estava cheia de
imagens de infância, como se sentisse que já não pertencia a este tempo, mas a
outro que não entendia bem. Não mo disse nestas palavras, interpretei-as assim
e quando as recordo é assim que as recordo.
Queria despedir-se. Dizer-me que guardara para mim o dinheiro
que juntara na sua vida. Para mim, para a Zé e para o André que acabara de
fazer dois anos. Deu-me o seu porta-moedas. Dentro dele estavam vinte contos: a
maior fortuna que poderia ambicionar. Guardei-o como a mais preciosa das joias.
A única coisa que verdadeiramente me pertence, que sinto me pertence.
A avó faria 100 anos.
Não assistiu à morte dos seus dois filhos. Não viu nascer o
irmão do André, o meu segundo a quem batizámos de Miguel em homenagem ao amor
incondicional que sentia por mim. Não me viu em divórcios, o que lhe teria sido
pesado.
Uma mulher extraordinária. Que me ensinou o valor das coisas que
não se têm de dizer. Que se sacrificou por mim como se a sua vida não fosse
importante, só a minha. Por isso, cada coisa que faço, penso ou sinto é nela
que esbarro – no que não comeu para que eu comesse, no que não viveu para que
eu vivesse, no que não sentiu para que eu sentisse.
Um dia, num livro de pensamentos, escrevi: «Uma família
empurrava um carro em plena avenida – já não lhes bastava a crise, as arrelias
e o preço da gasolina, agora também o motor. Há alturas em que um pequeno
problema, somado a um mundo de outras angústias, é capaz de desencadear uma
tempestade perfeita. A imagem fez-me regressar a uma madrugada em que, numa
esquina perigosa, empurrei um automóvel com a avó Joaquina lá dentro. É a ela
que volto quando alguém empurra carros em pequenas ruas ou largas avenidas.
Nunca perco a oportunidade de olhar lá para dentro – as pessoas não imaginam
que procuro o sorriso de uma avó de quem tenho tantas saudades».
É isso, só isso. O resto é silêncio. Por vezes, ruidoso.
Noutras, um mar calmo."
Luís Osório no SOL
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