"Não sou vítima. Sobrevivi a Auschwitz'
Sobreviveu a bombardeamentos, à vida no pior campo de concentração da II Guerra Mundial, à marcha da morte e ao tifo. Entrevista a Ida Grinspan
Passava da meia noite, de 30 para 31 de janeiro de 1944, quando o barulho de uma travagem brusca a acordou. Ouviu vozes. Três gendarmes franceses falavam com Alice, a ama que a acolhera em Deux-Sèvres, para a proteger dos bombardeamentos de Paris.
Ainda se lembra bem dessa noite?
Conheço o diálogo de cor. "Viemos prender a pequena judia que vive em sua casa", disseram. Alice respondeu "Não é possível! Não vão levar a miúda!" Mas o brigadeiro respondeu, secamente: "Temos ordens. Se não a levarmos, levamos o seu marido."
Ida Fensterszab (hoje Grinspan) tinha apenas 14 anos. Pensou em fugir, mas, ao saber que levariam Paul, desistiu. Não chorou quando foi presa. Nem quando a intimidaram a revelar o paradeiro do seu pai e irmão. Nem quando Alice lhe disse que, apesar das suas diligências e da certidão de batismo que lhe arranjara, não acediam a libertá-la, contou à VISÃO. Ida veio a Lisboa contar a sua história a alunos do Liceu Francês e do D. Leonor, e acedeu em ser entrevistada pela VISÃO.
De Deux-Sèvres foi levada para Paris e, de lá, para Drancy. Meteram-na num comboio fechado. Viajou durante três dias e três noites, sem comida nem espaço para as pernas, apenas com um balde de água para dezenas de pessoas e uma latrina. A água acabou e a latrina transbordou. O cheiro era insuportável. Acreditou-se que pior não poderia ser. Chegou a Birkenau na manhã de 13 de fevereiro, entre gritos ensurdecedores. Juntou-se às mulheres que diziam não estar cansadas e entrou no campo, sem saber que era vedado a menores de 16 anos.
Quantas pessoas foram levadas consigo?
O meu transporte tinha 1500 pessoas. Foram selecionados para o trabalho 210 homens e 61 mulheres. As 1629 que subiram para os camiões foram gaseados à chegada. Em 1945, dos 1500, só regressaram 18 homens e 24 mulheres.
Puseram-na nua, à frente dos SS. Raparam-lhe todos os pelos do corpo e tatuaram-lhe um número no braço esquerdo. Depois, "um duche gelado, o único que tomei no campo". Ida entrou no barracão com um nome, bem vestida, um penteado à moda e saiu um número, com uma estrela de David. "No espaço de meio dia, tudo desaba." Mas não chorou. "Não lhes quis dar essa satisfação."
Mantinha a esperança de encontrar a mãe, presa em julho de 1942. Disseram-lhe que a mãe não teria aguentado tanto tempo. Falaram-lhe das câmaras de gás. Mas não acreditou. Ninguém acreditou. Rapidamente perceberam. "Pelo cheiro a carne queimada. E os capo disseram-nos, brutalmente, que se entrássemos pela porta, saíamos pela chaminé." Passou fome e frio. Trabalhou 12 horas por dia, sete dias por semana. "Transportei pedras, um trabalho que não servia para nada. Só para nos embrutecer." Salvou pedacinhos de batatas podres, que nunca chegaria a comer. Passou pela fábrica de armamento.
Sobreviveu às seleções periódicas e às chamadas, duas vezes por dia estivessem mortas ou vivas, tinham de estar cinco na formação. Aprendeu a dar valor a pequenas coisas.
Aprendeu a dar valor à solidariedade...?
Sim. Éramos cinco numa cama. A manta era curta demais e as da ponta tinham frio. Então a mais velha organizou tudo. Todos os dias, uma diferente dormia no meio. A solidariedade não era a partilha de pão, porque não o tínhamos. Eram estas coisas.
Ida saiu de Auschwitz a 18 de janeiro de 1945, numa noite de luar. Ela e os outros prisioneiros caminharam durante três dias e três noites, sem comida. Só neve. Mal calçados mas a bom passo, porque os russos vinham mesmo atrás. "Ouvíamos o assobio das balas. E víamos, no caminho, os corpos abatidos." Sempre cinco a cinco. E, como na cama, as mais cansadas iam para o meio. Caminharam 60 quilómetros. Mais dois dias e meio de comboio, em vagons abertos. "Estava muito frio, mas abríamos a boca e tínhamos neve". Chegaram ao campo de Ravensbrück. Ficaram um mês. Seguiu-se outro campo, Neustadt-Glewe. "Delirei toda a noite. Como a febre era altíssima, deixei-me levar à enfermaria em Auschwitz, ir à enfermaria era ir à seleção, mas em Neustadt não havia câmaras de gás." Tinha os pés gelados e contraíra tifo. Uma enfermeira polaca, Wanda, arranjou-lhe medicamentos e deu-lhe sopa com batata. "No campo só bebíamos o caldo. Quando chegavam ao fundo da panela, aos legumes, trocavam-na por outra. Devo a vida a essa enfermeira", diz, comovida.
Reencontrou Wanda?
Procurei-a durante 56 anos. Quando descobri o seu apelido, escrevi-lhe. Correspondemo-nos. Ouvi a sua voz, rouca, ao telefone... Mas quando a fui ver a Varsóvia, estava em coma há dois dias. Morreu pouco depois.
Ida ficou na enfermaria de Neustadt dois meses e meio. De repente, os alemães abandonaram o campo e, dia e meio depois, os russos chegaram. "Arrasaram a entrada, cortaram a eletricidade e o arame farpado, mas nem entraram. Foram-se embora. Fomos completamente abandonadas." Mais tarde, aparecerem "três soldados americanos lindíssimos - e eu de cabelo rapado, por causa do tifo!" Deram-lhe rebuçados, chocolate e pastilhas e partiram. Ginette, que conseguia andar, foi à procura de ajuda e trouxe os russos, que as levaram, em carrinhos de mão, para o hospital militar de Neustadt. Mais um mês. "Os russos sabiam como alimentar pessoas que não comiam há muito tempo." Na altura do repatriamento, dois americanos chegaram de camião para as levar. "Não entramos em camiões! Eles não percebiam, mas, para nós, os camiões eram os de Auschwitz." Foi-lhes explicado que a guerra tinha acabado e não havia outro transporte. Os camiões transportaram-nas para Lindbourg, onde as quiseram pôr outra vez no hospital. "Desatámos a chorar. Só queríamos ir para França." E foram, por sorte, num velho avião Dakota canadiano.
"Já está. Estamos em França", ouviu, a meio do voo. E foi só aí, a sobrevoar a França, o momento em que sentiu a libertação. Chegaram a Bourgeais a 30 de maio de 1945, ainda de dia. Poderia parecer o regresso à sua vida, mas não. Este só aconteceu 16 meses depois.
Em que pensou, ao aterrar em França, depois de ter sido libertada?
Eu só queria ir ver se o meu pai tinha regressado! Mas acharam que eu não estava em estado de ir para casa. Para o confirmar, uma enfermeira pegou em mim para me dar banho. Perguntei-lhe se não era demasiado pesada e ela desatou a chorar. "Não, querida, não és", disse. Eu nem tinha noção do estado em que estava.
Mais três meses no hospital. E a notícia da morte do pai. Reviu o irmão e Alice. Seguiu para a Suíça. Mais um ano. "Foi uma terapia. Quando regressei a Paris, tinha quase 17 anos. Não pude voltar à escola." Teve de arranjar um emprego. Uma amiga da mãe aconselhou-a a fazer costura (o pai dela era alfaiate), mas hoje lamenta - teria preferido ser professora.
A guerra tinha acabado. Mas foi difícil recomeçar sem os pais. Pior ainda foi saber, imaginar, o que se passou. "Eu estive no campo, imagino tudo o que lhes possa ter acontecido, mas não sei nada." Só sabe que a mãe entrou em Auschwitz e não voltou. E que o pai foi denunciado e deportado no último transporte que saiu de Drancy, a 31 de julho de 1944.
Quando é que soube que o seu pai também estava no mesmo campo?
Em setembro de 1944, por acaso. Estava na fábrica e um homem disse-me, em francês. Foi um choque terrível. E, pela primeira vez desde que tinha sido presa, chorei.
A guerra acabou há 70 anos. Tem três dedos deformados e sequelas do tifo. Auschwitz nunca saiu completamente do seu espírito. Nunca fará o luto dos seus pais, garante. "E os que perderam os pais tiveram muito mais dificuldade em se readaptar." Viveu com o irmão, cinco anos mais velho. Na casa de família, em Paris, não encontrou nada. Os alemães haviam esvaziado tudo.
É possível esquecer, perdoar?
Nem esquecimento nem perdão! Esquecer é impossível. E para perdoar são precisos dois. Algum SS pediu perdão? Alguma vítima perdoou? Mas eu não sou uma vítima. Eu sobrevivi. Hoje, só quero que saibam o que homens puderam fazer a outros homens. Que saibam o que se passou, que pode acontecer, que estejam atentos. A Alemanha perdeu a guerra, mas o nazismo não morreu. As ideias neonazis existem, no mundo inteiro.
Ida começou a contar a sua história quando lho pediram, em 1988. Foi a Auschwitz. E depois três a quatro vezes por ano, até 2011. Foi duro. Tinha flashes de memória...
Desde os dez anos que finta a morte. Pensa nela?
Não. Tenho medo, mas também a impressão que não me acontecerá.
B.I.
Ida Grinspan nasce a 19 de novembro de 1929, em Paris
Em junho de 1940, foge para Deux Sèvres, a 400 km de Paris
Dois anos depois, a mãe é presa, em casa. O pai e o irmão conseguem esconder-se
Presa em janeiro de 1944, chega a Auschwitz-Birkenau a 13 de fevereiro, de onde só sairia em janeiro de 1945, na marcha da morte
A libertação, só a sentiria ao fim da tarde de 30 de maio de 1945, ao sobrevoar a França
O regresso à vida? "Oh lá lá, isso foi só em setembro de 1946". Tinha quase 17 anos
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